Ter um talão de cheques não é difícil. Basta que a pessoa possua conta
corrente em algum banco e não tenha restrição de crédito. Durante
décadas, antes que essa forma de pagamento tivesse seu lugar no mercado
ameaçado pelo cartão de crédito, a manipulação de um talão de cheques
dava ao correntista um ar de sofisticação e status.
A popularização do uso dos cheques, contudo, trouxe consigo a
insegurança e a desconfiança, pois aquele pequeno pedaço de papel não
oferecia a garantia de que a conta teria fundos suficientes para o
pagamento do valor ali expresso.
Além da devolução por falta de fundos, vieram outros problemas, como as
fraudes e as confusões geradas pelo cheque pós-datado. Muito demandado
em relação ao assunto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem firmando
jurisprudência sobre esse título de crédito, em relação a questões como
execução, prescrição, indenização por erros ou mesmo delitos como
fraude e roubo.
Insignificância
O Tribunal, por exemplo, negou a aplicação do princípio da
insignificância a um caso de furto em que o réu se aproveitou da relação
de amizade com a vítima para furtar quatro folhas de cheque em branco. A
Sexta Turma do STJ considerou que a existência de maus antecedentes e a
má conduta do réu, que abusou da confiança do amigo, justificaram a sua
condenação à pena de dois anos e 11 meses de reclusão (HC 135.056).
Em outro caso, o mesmo colegiado negou habeas corpus a um homem que
cometeu o crime de estelionato ao subtrair um talão de cheques e
falsificar a assinatura do titular em duas folhas, realizando em seguida
compras de mercadorias no valor de R$ 43 e R$ 51. O homem foi condenado
a dois anos e seis meses de reclusão, em regime semiaberto.
O relator do caso, ministro Og Fernandes, entendeu que a falta de exame
grafotécnico nos cheques fraudados pode ser suprida por outras provas.
“No caso, a materialidade do delito teria sido demonstrada pelo boletim
de ocorrência registrado pela vítima, apreensão das microfilmagens dos
cheques, auto de exibição e apreensão de cópia de comprovante de
abertura de conta corrente em nome da vítima, termo de coleta de padrões
gráficos do réu e confissão na fase do inquérito e em juízo”, afirmou o
ministro (HC 124.908).
Prescrição
Como o cheque é ordem de pagamento à vista, a sua eficácia para o saque
inicia-se com a simples entrega por parte do emitente ao beneficiário,
podendo este dirigir-se imediatamente à agência bancária para proceder
ao saque ou depósito. O prazo de apresentação serve como orientação para
a contagem do prazo prescricional.
O STJ já consolidou o entendimento de que o cheque deixa de ser título
executivo no prazo de seis meses, contados do término do prazo de
apresentação fixado à data em que foi emitido, e a regra persiste
independentemente de o cheque ter sido emitido de forma pós-datada.
Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, o uso do cheque pós-datado,
embora disseminado socialmente, traz riscos ao tomador do título, como o
encurtamento do prazo prescricional e a possibilidade de ser
responsabilizado civilmente pela apresentação do cheque antes do prazo
estipulado (REsp 875.161).
Para a ministra Nancy Andrighi, ainda que seja prática costumeira na
sociedade moderna, a emissão de cheques pós-datados não encontra
previsão legal. “Admitir-se que do acordo extracartular decorram os
efeitos almejados pela parte recorrente importaria na alteração da
natureza do cheque como ordem de pagamento à vista, além de violação dos
princípios da literalidade e abstração”, afirmou (REsp 1.068.513).
Em outro julgamento, a Terceira Turma decidiu que ação cautelar de
sustação de protesto de cheque interrompe a prescrição da execução (REsp
1.321.610).
A decisão foi tomada no julgamento de recurso especial interposto por
microempresa, no curso de embargos à execução de cheque. A parte alegou a
prescrição do cheque que deu origem à execução.
Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, o credor não foi desidioso,
apresentando o cheque para protesto antes de decorrido o prazo de
prescrição e aguardando o trânsito em julgado das ações impugnativas
promovidas pela devedora para só então executar o título, comprovando
sua boa-fé.
A Quarta Turma, no julgamento do REsp 926.312, entendeu que é possível
ação monitória baseada em cheque prescrito há mais de dois anos sem
demonstrar a origem da dívida. De acordo com o ministro Luis Felipe
Salomão, em caso de prescrição para execução do cheque, o artigo 61 da
Lei 7.357/85 prevê, no prazo de dois anos a contar da prescrição, a
possibilidade de ajuizamento de ação de enriquecimento ilícito. Expirado
esse prazo, o artigo 62 da Lei do Cheque ressalva a possibilidade de
ajuizamento de ação fundada na relação causal.
Luis Felipe Salomão destacou ainda que a jurisprudência do STJ também
admite o ajuizamento de ação monitória (Súmula 299), reconhecendo que o
próprio cheque satisfaz a exigência da “prova escrita sem eficácia de
título executivo” a que se refere o artigo 1.102-A do
Código de Processo Civil.
Execução
A execução do cheque é forma de cobrança simples, rápida e eficaz de
título cambial. O STJ já entendeu que, para poder ser executado, o
cheque deve ter sido apresentado à instituição financeira dentro do
prazo legal. A falta de comprovação do não pagamento do título retira
sua exigibilidade (REsp 1.315.080).
Para o ministro Luis Felipe Salomão, “por materializar uma ordem a
terceiro para pagamento à vista”, o cheque tem seu momento natural de
realização na apresentação, “quando então a instituição financeira
verifica a existência de disponibilidade de fundos, razão pela qual a
apresentação é necessária, quer diretamente ao sacado quer por
intermédio do serviço de compensação”.
Em outro julgamento, a Terceira Turma do STJ definiu que empresa que
endossa cheque de terceiro perante factoring também é responsável pelo
pagamento do valor do título (REsp 820.672).
No caso, a empresa de factoring ajuizou ação de execução contra a
empresa e contra a pessoa que emitiu o cheque, com o objetivo de cobrar
importância de cerca de R$ 1 mil. Ao analisar a questão, o colegiado
destacou: “A lei é mais que explícita: quem endossa garante o pagamento
do cheque. Seja o endossatário quem for. A lei não faz exclusões.
Portanto, não cabe criar exceções à margem da lei.”
Outra decisão do STJ garantiu aos credores o acesso ao endereço de
emitente de cheque sem fundos. Para os ministros da Quarta Turma, o
banco tem dever geral de colaboração com o Judiciário e deve fornecer o
endereço, se determinado pela Justiça (REsp 1.159.087).
Para o colegiado, o sigilo bancário é norma infraconstitucional e não
pode ser invocado de modo a tornar impunes condutas ilícitas ou violar
outros direitos conflitantes. Além disso, os ministros afastaram a
alegação de que a medida viola direitos do consumidor.
“Apesar de o Código de Defesa do Consumidor alcançar os bancos de dados
bancários e considerar abusiva a entrega desses dados a terceiros pelos
fornecedores de serviços, o CDC impõe que se compatibilizem a proteção
ao consumidor e as necessidades de desenvolvimento econômico”, destacou o
ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso.
Indenização
Acordo em cheque pós-datado não vincula terceiros que o sacaram antes do
prazo. Dessa forma, o terceiro de boa-fé não está sujeito a indenizar o
emitente por eventuais danos morais decorrentes da apresentação antes
da data combinada. O entendimento foi aplicado pela Quarta Turma (REsp
884.346).
Segundo o relator, ministro Luis Felipe Salomão, era incontroverso no
caso que o cheque circulou e que não constava como data de emissão
aquela supostamente pactuada, mas a data em que foi efetivamente
emitido. “O cheque é ordem de pagamento à vista e submete-se aos
princípios da literalidade, abstração, autonomia das obrigações cambiais
e inoponibilidade das exceções pessoais a terceiros de boa-fé”,
afirmou.
O ministro observou que, apesar de a Súmula 370 do próprio STJ orientar
que há dano moral na apresentação antecipada do cheque pós-datado, essa
regra se aplica aos pactuantes e não a terceiros.
Em outro julgamento, a Terceira Turma condenou o Banco A. A. R. S/A ao
pagamento de R$ 5 mil por danos morais a correntista que teve o seu nome
incluído do Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo. O motivo foi a
devolução de forma errada, por insuficiência de fundos, de um cheque que
já estava prescrito (REsp 1.297.353).
A Turma, seguindo o voto do ministro Sidnei Beneti, concluiu que o prazo
estabelecido para apresentação do cheque serve, entre outras coisas,
como limite temporal da obrigação que o emitente tem de manter provisão
de fundos em conta bancária suficiente para a compensação do título.
“A instituição financeira não pode devolver o cheque por insuficiência
de fundos se a apresentação tiver ocorrido após o prazo que a lei
assinalou para a prática desse ato”, acrescentou.
O STJ condenou outra instituição bancária a pagar indenização por ter
devolvido cheques sustados ao devedor, e não ao credor. No caso, a
Quarta Turma manteve a condenação do Banco do Brasil a indenizar por
danos morais, no valor de R$ 10 mil, a Associação Comunitária de
Laginha, na Paraíba, por sustação de dois cheques (REsp 896.867).
A associação celebrou convênio com o estado da Paraíba, mediante o
Projeto Cooperar, para a construção de rede de eletrificação rural.
Sustentou que o Projeto Cooperar depositou dois cheques na sua conta
corrente, no valor de R$ 22.271,57, que serviriam para pagar a empresa
contratada por ela.
Ocorre que os cheques foram sustados pela administração pública, sendo o
valor estornado da conta corrente da associação. Porém, ao invés de a
instituição bancária ter devolvido os títulos para o credor
(associação), entregou-os ao devedor (Projeto Cooperar), conduta essa
que impediu a associação de exercer seus direitos creditórios e pagar
suas obrigações junto a fornecedores.
Para o ministro Luis Felipe Salomão, relator, o governo do estado não
tem atribuição para emitir normas relativas a procedimentos bancários,
notadamente as concernentes a cheques.
“Ainda que se reconhecesse alguma vinculação entre o governo estadual e a
instituição bancária, o que não ocorre, notadamente quanto a
procedimentos bancários, não cometeria ato ilícito a instituição que
deixasse de cumprir determinação manifestamente ilegal”, afirmou o
ministro.
Processos: HC 135056, HC 124908, REsp 875161, REsp 1068513, REsp
1321610, REsp 926312, REsp 1315080, REsp 820672, REsp 1159087, REsp
884346, REsp 1297353, REsp 896867
Fonte: Superior Tribunal de Justiça